sábado, 1 de maio de 2010

16 anos...

Um desafio que deve nortear todo aquele que queira fazer jornalismo esportivo (não falo apenas de Fórmula 1) no Brasil é encontrar a linha que separa o papagaio de pirata Galvão Bueno e o abutre Flavio Gomes. E falando de Senna e sua morte, esse desafio se torna um gigante difícil de ser batido.
No entanto, 16 anos atrás, o carioca Fernando Calazans - importante membro da ESPN Brasil - conseguiu. No artigo que reproduziremos abaixo, lançado no seu belo livro "O Nosso Futebol" (uma compilação de suas crônicas sobre o esporte mais popular do mundo, e outros, publicada em 1998), Calazans faz uma importante reflexão sobre o piloto e o personagem histórico-cultural que Senna (independente do que digam GB ou FG) foi.
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"Ayrton Senna, o imortal das pistas"
Uma noite, Nelson Rodrigues chegou em casa depois de jantar com amigos. Percebeu no rosto de sua mulher o prenúncio da notícia fatídica que ela lhe daria, sem jeito, minutos depois: Guimarães Rosa tinha morrido.
Guimarães Rosa era, segundo as confissões do próprio Nelson, um dos poucos escritores de quem tinha inveja - e vocês sabem que a inveja literária é, como observou Paulo Francis no seu "Diário da Corte", um dos sentimentos mais fores do ser humano.
Nelson conta que, depois de se entir um pulha com a abominável sensação de alívio por causa da morte do formidável rival, dobrou-se por fim à realidade e, chocado com a notícia e com sua reação, teve ímpetos de perguntar à mulher: "Mas como morreu, se estava vivo?"
Foi, com certeza, a mesma pergunta que se fizeram milhões de brasileiros, em face da notícia da morte de seu maior ídolo dos últimos tempos: como morreu, se estava vivo uma fração de segundo antes de se chocar com o paredão da morte em Ímola?
E outras perguntas mais: como morreu se uma fração de segundo antes do choque, era um tricampeão mundial correndo a 300 quilômetros por hora a caminho do tetra? Como morreu se tinha 34 anos e estava no auge da perícia, da forma técnica e física, e em plena maturidade? Como morreu se era o maior piloto de todos os tempos? Como morreu se, feito Guimarães Rosa nas letras, era também imortal?
Eis um elemento interessante que não consigo intuir: não sei se foi Ayrton Senna que convenceu seus fãs de que era imortal ou se foram os fãs que convenceram a ele. Sei que Senna e toda a imensa legião de sennistas tinham como líquida e certa sua imortalidade.
Apesar da minha admiração pelo piloto, nunca consegui controlar uma certa implicância com muitos de seus fãs, e que decorria da implicância que estes tinham com Alain Prost. Ou que decorria, antes mesmo do antagonismo criado por eles: a coragem de Senna e o medo de Prost.
Entre as tantas frases evocadas na histórica edição de ontem do jornal, nenhuma me toca mais do que esta, de Prost: "Protestei muito mas não tive apoio, as pessoas preferiam dizer que eu tinha medo. E eu só queria segurança."
Para ser o antípoda de Prost, Senna era obrigado a provar, dia após dia, que não tinha medo. Seus fãs não permitiriam que tivesse. Tinha que ser o mais mveloz no sol ou na chuva, na pista limpa ou desuntada de óleo, nos circuitos de baixa ou de alta, quando pudesse ultrapassar ou quando não pudesse, quando tinha carro ou quando não tinha, com ou sem segurança.
Senna tinha que cultivar por obrigação própria e pela obrigação que os fãs lhe impunham, a fantasia da imortalidade, enquanto Prost já sabia que na realidade na Fórmula 1 não existem imortais. Se ele, Prost, não cuidasse de si mesmo, ninguém mais cuidaria. E Prost se cuidou. Eis por que é chamado de "Professor" e eis por que está vivo.
E há uma outra frase, de Senna, igualmente significativa: "Minha vida é correr. É como comer ou beber, simplesmente preciso disso." Pela primeira vez na vida, Senna amanheceu domingo sem vontade de correr e revelou pelo telefone à sua namorada o que Frank Williams já havia pressentido na véspera. A julgar por sua frase, sem vontade de correr ele já estava perdendo um pouco da vida.
Agora, os fãs que julgavam Senna imortal provavelmente nunca mais verão um piloto como ele.
03 de maio de 1994

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